Alain Touraine, um intelectual incansável

Ricardo Festi escreve nota em razão do recente falecimento de Alain Touraine: “Touraine foi um intelectual de grande envergadura e a sua obra, concordemos ou não com as suas teses, é uma fonte de inspiração e de possíveis diálogos. Deixo aqui o meu respeito a este admirável e incansável sociólogo, que será lembrado como um dos mais importantes da segunda metade do século XX.”

Por Ricardo Festi

Na madrugada do dia 09 de junho de 2023, aos 97 anos, faleceu o sociólogo francês Alain Touraine. Considerado um dos mais importantes autores das ciências sociais do mundo ocidental na segunda metade do século XX, coordenou múltiplas pesquisas e publicou dezenas de livros ao longo de uma carreira acadêmica marcada por diversas etapas e inflexões. Sempre teve como sua principal preocupação a busca e a compreensão dos sujeitos históricos capazes de transformar as realidades sociais. Ao final, foi um intelectual insaciável, como ele mesmo relatou nesta entrevista:

Trabalhei sob condições desfavoráveis durante toda a minha carreira e, finalmente, o que é muito estranho no meu caso, após a morte da minha segunda esposa, ou seja, há cinco anos, quando eu tinha 86 anos, eu me pus a trabalhar como louco. Escrevi um pequeno livro sobre a crise econômica, seguido de um grosso livro sobre o declínio da sociedade industrial, de outro livro grande sobre o nascimento da sociedade pós-industrial, de um pequeno sobre a política francesa e, atualmente, escrevo uma conclusão teórica geral. Bom, trata-se de muita coisa para apenas cinco anos. […] Eu não fiz nada além de trabalhar. Trabalhei sábado, domingo, férias todo o tempo! Eu tinha motivações interiores fortes quando minhas desmotivações externas bloqueavam de alguma forma minha influência [intelectual]. […] Acho que todos esses livros que fiz nos últimos anos não foram lidos. Ninguém se interesse por um tipo de 90 anos. Então, escrevo por escrever, porque assim deixo meus vestígios.1

Nos sucessivos dias após o anúncio de sua morte, vários textos foram publicados (em jornais ou redes sociais virtuais) sobre a sua contribuição intelectual, o seu legado e influência, suas relações com a América Latina entre outros. À primeira vista, um leitor que desconhece a sua obra tem a impressão de ter existido vários Touraines. Ele mesmo dividiu a sua produção e carreira em diversas fases, marcadas por temáticas de estudos, vínculos institucionais e contextos políticos. Para alguém que viveu intensamente a vida intelectual, tendo início no final dos anos 1940 até os últimos anos de sua vida, é difícil reduzi-la a um único aspecto, ainda que haja um todo coerente repleto de contradições e ambiguidades.

Esta nota pretende destacar a primeira fase da vida acadêmica de Touraine e um aspecto menos conhecido pelo grande público, isto é, a sua generosidade e solidariedade, em especial com aqueles com quem traçou algum tipo de relação pessoal ou profissional ao longo de sua vida. Essas características são coerentes, de alguma forma, com suas inquietações intelectuais e os seus objetos de pesquisa.

A primeira fase da vida acadêmica de Touraine, que se estende do final da década de 1940 a 1968, é marcada pelos estudos sobre a classe trabalhadora, em particular a consciência operária, o movimento operário, a industrialização e seus efeitos sobres os sujeitos que trabalham. Este período foi exaustivamente analisado em meu livro As origens da sociologia do trabalho, publicado recentemente pela editora Boitempo. Nele, é possível encontrar análises e críticas mais robustas à obra do francês.

A sua trajetória na sociologia tem início no inverno de 1947-48, quando, ainda jovem, abandona o curso de história na prestigiosa École Normale Supérieure (ENS) e vai trabalhar numa mina de carvão, na cidade operária de Raismes, próxima à fronteira com a Bélgica. Lá, leu a tese de doutorado de Georges Friedmann, publicada em 1946 sob o título Problemas humanos do maquinismo industrial. Segundo suas memórias, o livro o “desconcertou”. “Era uma obra muito nova para a França, pois a universidade francesa não se interessava pelos problemas contemporâneos do trabalho, e sobretudo do trabalho operário, objeto provavelmente muito vulgar para nossos grandes espíritos”.2 Nesta época, se lhe tivessem pedido para desenhar uma sociedade, ele teria colocado em seu centro uma fábrica e uma mina.

Friedmann o incentiva a concluir os seus estudos na ENS e, logo em seguida, a compor o recém-criado Centre d’Études Sociologiques (CES), a primeira instituição francesa voltada exclusivamente para a sociologia no pós-Segunda Guerra Mundial e dirigida, em seus primeiros anos, por Gurvitch e Friedmann. Neste espaço, foram desenvolvidas importantes investigações sobre o mundo do trabalho, dentre elas as pesquisas de Touraine nas fábricas Renault que deram origem à sua dissertação de mestrado.3 Surgia, nesse centro, a sociologia do trabalho como a conhecemos hoje.

Alguns anos depois, Friedmann passava a ser demandado por instituições e pesquisadores da América Latina para ajudar na construção de linhas de pesquisa no campo da sociologia do trabalho. Em 1954, recebeu uma carta de Anísio Teixeira, presidente da Capes, convidando-o para vir ao Brasil ajudar na criação de um centro de pesquisa sobre a indústria e o trabalho na Universidade de São Paulo. Na mesma época, foi convidado para realizar algo parecido em Santiago do Chile. Por excesso de atividades na França e com a presidência da Associação Internacional de Sociologia (ISA), Friedmann envia em seu lugar os seus pupilos, com destaque para Alain Touraine.

Foi assim que o autor falecido teve os seus primeiros contatos com a América Latina. Primeiro, no Chile, realizando uma pesquisa junto à Universidade do Chile, entre 1956 e 1958, sobre as atitudes e a consciência dos operários. Nesta passagem, conheceu a sua primeira esposa, Adriana, e teve como pesquisador associado ao seu projeto, Enzo Faletto, na época estudante de graduação. Em 1960, visitou pela primeira vez o Brasil, após três passagens de Friedmann, aterrissando direto em São Paulo. Na USP, ajudou a criar o Cesit, centro de pesquisa dirigido, em seus primeiros anos, por Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.

Ao lado de Friedmann, Pierre Naville, Michel Crozier, Treanton, Jean-Daniel Reynaud e outros ajudou a criar o campo científico sociologia do trabalho. Contribuiu não apenas com marcantes pesquisas e publicações, como também a organização deste. Fez parte do projeto, iniciado em 1954, que resultou no famoso Tratado de Sociologia do Trabalho (publicado na França, em dois volumes, em 1961 e 1962).4 Foi também cofundador, em 1959, da revista Sociologie du Travail. Criou e dirigiu, nos anos 1950 e 1960, o Laboratório de Sociologia Industrial, vinculado a hoje denominada Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHSS). E, por fim, foi uma das figuras centrais na internacionalização dessa disciplina, em especial na América Latina, região onde manteve relações ao longo de toda a sua vida.

Em 2016, aos 91 anos de idade, Touraine anunciou que ministraria um novo seminário, com sessões quinzenais, na Maison Suger, vinculada à Fondation Maison des Sciences de l’Homme (FMSH), em Paris. Como revelou em entrevista, sentia a necessidade de se expressar, sair de seu isolamento pessoal e dialogar com as pessoas, principalmente as novas gerações. Eu tive a sorte de estar na França realizando a pesquisa para o meu doutorado e poder participar desse seminário. O sociólogo francês expunha as suas ideias – na verdade, ele anunciava publicamente as sínteses de sua obra que viria a ser publicada no livro Défense de la modernité (2018) – e ouvia atentamente os comentários, principalmente dos mais jovens e estrangeiros. Era evidente o seu afeto pela América Latina, mas visivelmente demonstrava uma curiosidade maior pela Ásia e, em particular, a China por meio das falas de estudantes oriundos dessa região.

Discreto e gentil no trato, crescia e se impunha respeitosamente nos debates. Sua generosidade com outros pesquisadores, em particular com os seus orientandos e orientandas, foi destacada na maioria dos textos publicados nesses últimos dias após o anúncio de sua morte. Sobre esse aspecto de sua personalidade, gostaria de destacar um fato pouco conhecido e ainda não abordado pela literatura especializada.

No dia 11 de setembro de 1973, o sociólogo francês encontrava-se ministrando um curso na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), com sede em Santiago do Chile. Este foi o dia do golpe de Estado de Pinochet e dos militares contra o governo de Salvador Allende. Quatro anos depois, em suas memórias, Touraine escreveu:

No momento em que escrevo, a América Latina que eu conheci há 20 anos está em vias de desaparecer. Em 1964, o golpe de Estado brasileiro dispersou (ao menos provisoriamente), a vida intelectual, suprimiu durante um longo período a vida política e fez aparecer sobre este continente bastante pacífico a tortura e a repressão sistemática.5

O que poucos sabem é que no dia 15 de setembro de 1973, um grupo de acadêmicos se reuniu na Flacso para avaliar a situação política e o futuro incerto de suas vidas, carreiras e país. Nesta, decidiu-se pela criação do Comitê Internacional de Ciências Sociais pelo Chile e foi eleito como seu coordenador internacional Alain Touraine.6 A partir daí, ele e sua esposa se dedicariam a ajudar estudantes, acadêmicos e militantes (não apenas das ciências sociais) a deixar o país e a manter em segurança as suas vidas e a de suas famílias. “Na França, minha esposa e eu organizamos a ajuda aos chilenos refugiados. O problema era sempre encontrar um posto de trabalho. E nesta época era mais fácil que hoje de encontrá-lo”.7 Usa-se de sua influência e rede internacional para conseguir postos de trabalhos aos exilados ou cartas convites para qualquer tipo de evento ou atividade para que quem estivesse em apuros no Chile pudesse solicitar um salvo-conduto e uma permissão de saída do país. Solicitaram ajuda a esse comitê figuras como Ruy Mauro Marini, José Serra, Eder Sader, Viola Muños Silva e centenas de outros.

Na entrevista que fiz com Touraine, perguntei se era possível afirmar que a América Latina influenciou de certa forma a sua obra, que me respondeu:

Sim! Isso é bastante visível. Eu tenho muita gratidão com os latino-americanos que realmente me receberam muito bem. Eu tive doutorandos de todos os lugares. […] Eu deixei de lado um pequeno livro sobre o golpe de Estado no Brasil, que eu havia preparada. Depois passei a me preocupar com o que se passava no Chile. Acompanhei tudo, desde o Golpe de 1973 ao Plebiscito de 1989. […] Mas eu estava interessado no fato de que a América Latina me dava um modelo que não tinha nada a ver com os europeus, não eram nem comunista, nem socialista, nem nada… E depois, na região temos uma grande vantagem de trabalho, a facilidade de comparação entre os países…8

No entanto, o golpe de 1964 no Brasil e de 1973 no Chile deu a sensação de que uma geração de intelectuais tinha sido derrotada e uma fase vinculada a uma agenda de pesquisa e de reflexões tinha se encerrado. Em um diário produzido durante a sua permanência no Chile, em 1973, a sua última nota foi escrita em 24 de setembro, com o título “Morte de Neruda, a repressão intelectual, adeus”. Anos antes, em meados dos anos 1960, o sociólogo francês já tinha experimentado as consequências de um golpe de estado sobre as ciências sociais, no caso, no Brasil e, em particular, sobre o Cesit, com quem articulava uma grande pesquisa internacional a partir do LSI sobre o operariado latino-americano, comparando Brasil, Chile, Argentina, México, Colômbia e outros países. Os brasileiros acabaram não participando da pesquisa, mas o projeto seguiu em frente com uma articulação, na Argentina, com Gino Germani.

Mas não era apenas o contexto político que mudava no mundo e, em particular, na América Latina. Na segunda metade dos anos 1960, já consagrado Diretor de Estudos da EHESS, o mais alto cargo dentro dessa instituição, e professor da Universidade Paris-Nanterre, começou a se interessar por outros sujeitos sociais, em especial o movimento estudantil. Mais uma vez, adiantou-se a um dos processos mais importantes daquele período, empreendendo pesquisas sobre os estudantes universitário e dando aula no bastião das rebeliões estudantis de maio de 1968, casa também do líder Daniel Cohn-Bendit.

No entanto, uma análise talvez apressada e impressionista das mudanças tecnológicas – em particular a implementação da automação industrial – e da política, levou aquela geração de sociólogos do trabalho a concluir, no final dos anos 1960, que o trabalho deixaria de ter centralidade nas análises e na estruturação da sociedade. Isso os fez migrar para outras áreas de estudos, como foi o caso de Friedmann, por exemplo, que dedicou suas últimas reflexões ao lazer. A percepção deles tinha certo respaldo na realidade: a automação e a implementação de um modelo mais racional do trabalho (o taylorismo-fordismo) fizeram com que fosse possível liberar homens e mulheres de trabalhos mais pesados e rotineiros, diminuir a jornada de trabalho, aumentar os salários e a produtividade. Esse processo coincide com o chamado Trinta Anos Gloriosos, isto é, o período que vai de 1945 a 1974.

Estavam tão errados nessa questão, tanto é que, após o fim do boom das economias capitalistas avançadas, assistimos a um profundo processo regressivo das condições de trabalho, dos direitos e a um aumento substancial das jornadas de trabalho, aproximando-se das condições laborais do século XIX.

Todas essas mudanças resultaram na primeira inflexão de Touraine, que o levou a sua segunda fase, aquela mais conhecida, sobre os novos movimentos sociais e o método da intervenção sociológica.9 O livro que demarcou essa inflexão foi Sociedade pós-industrial, publicado em 1969. Suas novas teses – e este livro em particular – acabaram por alimentar, por meio de outros autores, as posições sobre o “fim do trabalho”. No entanto, o francês nunca deixou de considerar a importância do movimento operário e do trabalho na construção da política na sociedade. Ele mesmo admitiu, no Seminário da Maison Suger, que o título do livro de 1969 trouxe muita confusão, pois nunca teria considerado que a sociedade superaria a indústria como estruturante.

Polêmicas à parte, a verdade é que Touraine foi um intelectual de grande envergadura e a sua obra, concordemos ou não com as suas teses, é uma fonte de inspiração e de possíveis diálogos.10 Deixo aqui o meu respeito a este admirável e incansável sociólogo, que será lembrado como um dos mais importantes da segunda metade do século XX.


1 Esta entrevista com Alain Touraine foi realizada em seu apartamento em Montmartre no dia 22 de fevereiro de 2017. Partes dela foram publicadas no livro As origens da sociologia do trabalho (Boitempo, 2023) e no Dossiê que organizamos na revista Lua Nova, n. 106, de 2019. Os livros a que o entrevistado fez referência foram La fin des sociétés (2013), Après la crise (2013), Nous, sujets humains (2015), Le nouveau siècle politique (2016), Défense de la modernité (2018), todos publicados pela Éditions du Seuil. Também lançou, pela Éditions de l’Aube, Macron par Touraine (2018).
2 Alain Touraine. Un désir d’histoire. Paris: Stock, 1977, coleção Les Grands Auteurs, p. 44-5.
3 Alain Touraine. L’ Evolution du travail ouvrier aux usines Renault. Paris: Centre national de la recherche scientifique, 1955.
4 Um capítulo que escrevi analisandoa publicação do Tratado de Sociologia do Trabalho na França e a sua tradução no Brasil sairá em livro organizado por Roberto Véras, José Ricardo Ramalho e Cesar Sanson, ainda em 2023.
5 Alain Touraine. Un désir d’histoire. Paris; Stock, 1977, coleção Les Grands Auteurs, p. 149.
6 Pude reconstruir parte da história deste comitê a partir de documentos inéditos que encontrei no Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (Imec), em Caen, na França. São centenas de cartas de personalidades que buscavam, por meio do Comitê, ajuda para deixar o Chile. Publiquei recentemente um artigo, em francês, intitulado “Sociologues en exil : vie et mort d’une génération d’intellectuels” na revista Brésil(s), n. 22 de 2022. Uma versão em português será publicada no mês de agosto de 2023, próximo ao aniversário dos 50 anos do golpe de Pinochet.
7 Alain Touraine: entrevista realizada em 22 de fevereiro de 2017. Paris, França. Gravada digitalmente, 1h52’09”.
8 Idem.
9 Ver Alain Touraine, Introducción al método de la intervención sociológica, Estudios Sociológicos IV, 11, 1986.
10 Infelizmente, boa parte de sua última produção intelectual ainda é pouco conhecida na França e, sobretudo, em países não francófonos.

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Ricardo Festi é professor do Departamento de Sociologia (SOL) e do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGSOL) da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social da UnB. Diretor da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet/2021-23). Editor Responsável da revista Sociedade e Estado. Publicou, pela Boitempo As origens da sociologia do trabalho (2023).

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